O setor automóvel entrou numa fase de transformação estrutural em que as certezas históricas deixaram de servir como âncoras estratégicas. O estudo global da BCG What Car Buyers Want confirma que o comprador mudou de forma profunda: é menos fiel, mais digital, mais recetivo a novas marcas e cada vez mais confortável com o veículo elétrico como escolha recorrente.
Esta mudança não resulta de um único fator tecnológico ou regulatório, mas da convergência entre novas expectativas de consumo, maturação dos BEVs e um mercado global mais fragmentado. Para os fabricantes, os próximos cinco anos não serão apenas de adaptação incremental, mas de reposicionamento estratégico.
A erosão da lealdade como sinal de rutura
Um dos sinais mais claros desta transição é o enfraquecimento da fidelidade às marcas tradicionais. Na Europa e nos Estados Unidos, apenas cerca de 35% a 40% dos consumidores tenciona repetir a marca na próxima compra. Na China, esse valor cai para perto de 10%, refletindo um mercado altamente competitivo, aberto à experimentação e pouco preso a heranças simbólicas.
Esta quebra é particularmente acentuada entre os consumidores mais jovens, que avaliam o automóvel menos como um símbolo de pertença e mais como uma plataforma funcional, tecnológica e integrada no seu quotidiano digital. Para os OEMs, a marca deixa de ser um ativo passivo e passa a exigir renovação constante de relevância.

BEVs deixam de ser uma experiência para se tornarem uma escolha
A eletrificação do parque automóvel avança de forma desigual entre regiões, mas o dado decisivo é outro: quem já conduz um veículo elétrico tende a repetir a escolha. O estudo mostra que 71% dos proprietários de BEVs pretende adquirir novamente um elétrico, um indicador de satisfação que consolida esta tecnologia como opção estrutural e não transitória.
Na Europa, a motivação está cada vez mais ligada ao custo total de utilização e à poupança operacional. Nos Estados Unidos e na China, o fator tecnológico e a experiência de condução assumem maior peso. Persistem reservas associadas à autonomia e ao carregamento, mas estas convivem com um núcleo crescente de consumidores já convertidos, o que cria um mercado a duas velocidades.

A China como referência, não apenas como origem
Outro elemento crítico é a crescente abertura a marcas chinesas, sobretudo na Europa e em mercados emergentes. Entre 10% e 20% dos consumidores europeus admitem considerar a compra de um veículo chinês, um valor muito superior à atual quota de mercado destes fabricantes.
Na China, as marcas nacionais dominam já cerca de 69% das vendas, beneficiando de uma combinação de preço, tecnologia e rapidez de inovação. Este movimento altera o equilíbrio competitivo global: a China deixa de ser apenas uma base industrial e afirma-se como polo de criação de marcas e de expectativas de produto.

Tecnologia autónoma e confiança assimétrica
A condução autónoma segue um percurso marcado por entusiasmo e cautela. Entre quem já utiliza funcionalidades autónomas, a perceção de utilidade é elevada. No entanto, a aceitação varia fortemente por região. Na China, a maioria dos consumidores aceita viajar num veículo totalmente autónomo, enquanto na Europa e nos Estados Unidos persiste uma atitude mais prudente.
Esta assimetria obriga os fabricantes a estratégias regionais diferenciadas, tanto ao nível da comunicação como da oferta tecnológica, evitando soluções uniformes num mercado global cada vez mais heterogéneo.

A experiência digital como novo campo de decisão
A digitalização tornou-se um fator decisivo em toda a jornada do cliente. Uma parte significativa dos consumidores admite já a compra integralmente online do próximo veículo, tendência que se acentua entre os mais jovens. A valorização de ecossistemas digitais, atualizações remotas e integração com plataformas tecnológicas externas passou a influenciar diretamente a escolha da marca.
Neste contexto, o automóvel aproxima-se de um produto tecnológico em permanente atualização, mais do que de um bem durável fechado no momento da compra.

Um setor em reposicionamento estratégico
“Estamos a assistir a uma mudança estrutural no setor automóvel: os consumidores estão a redefinir as suas prioridades, a lealdade está a enfraquecer, as marcas chinesas estão a ganhar protagonismo e os veículos elétricos estão a consolidar a sua ascensão”, sublinha Carlos Elavai. Para o responsável da BCG, os fabricantes que conseguirem antecipar estas dinâmicas, reforçar capacidades digitais e oferecer propostas de valor claras serão os que liderarão o próximo ciclo de crescimento.
Num mercado onde a fidelidade já não é garantida e a diferenciação se constrói na experiência, a competitividade deixa de ser uma herança e passa a ser uma conquista contínua.







