A transição energética europeia entrou numa fase paradoxal. A produção renovável cresce, a eletrificação acelera e os objetivos climáticos tornaram-se estruturais para a competitividade do bloco. No entanto, a infraestrutura que deveria sustentar esta transformação permanece desajustada. O European Grids Package, apresentado pela Comissão Europeia a 10 de dezembro, surge precisamente para responder a este desfasamento entre ambição política e capacidade operacional.
Mais do que um pacote técnico, trata-se de uma tentativa de resolver um dos principais gargalos do sistema energético europeu: redes elétricas envelhecidas, subinvestidas e pouco preparadas para lidar com produção descentralizada, novos consumos e exigências de segurança.
Redes antigas para uma economia elétrica
A Comissão Europeia é clara no diagnóstico: cerca de 40% das redes elétricas europeias têm mais de 40 anos, tendo sido concebidas para um sistema centralizado, previsível e com fluxos unidirecionais. Esse modelo entrou em rutura.
Hoje, as redes têm de integrar energias renováveis intermitentes, veículos elétricos, bombas de calor, autoconsumo, armazenamento e flexibilidade da procura. Segundo dados associados ao pacote, as limitações na distribuição e na ligação à rede já representam custos anuais de cerca de 8,9 mil milhões de euros, sobretudo devido a atrasos, congestionamentos e desperdício de produção renovável.
O problema não é apenas físico. A fragmentação regulatória, os processos de licenciamento morosos — que podem chegar a dez anos — e a fraca adoção de soluções digitais criam um bloqueio sistémico que compromete a competitividade europeia.

O que propõe o European Grids Package
O European Grids Package pretende atuar em três planos complementares. Em primeiro lugar, acelerar e orientar o investimento, reconhecendo que serão necessários centenas de milhares de milhões de euros até 2030, sobretudo ao nível da distribuição, onde se concentram os maiores estrangulamentos.
Em segundo lugar, modernizar o quadro regulatório, incentivando soluções inteligentes, flexíveis e digitais, em vez de um simples reforço físico da infraestrutura. A Comissão propõe uma maior harmonização, planeamento antecipado e mecanismos que valorizem redes ativas e gestão inteligente da procura.
Por fim, o pacote introduz uma visão mais sistémica, onde a rede deixa de ser um canal passivo e passa a ser um elemento estratégico da transição energética, articulando produção, consumo, armazenamento e flexibilidade.

Flexibilidade: de conceito técnico a ativo económico
Um dos pontos mais relevantes e menos consensuais do pacote é a centralidade atribuída à flexibilidade. Não se trata apenas de tecnologia, mas de uma mudança de paradigma económico e regulatório.
Laurent Bataille, Executive Vice President of Europe Operations da Schneider Electric, sintetiza bem esta visão: “A flexibilidade é um ativo estratégico que pode reduzir a procura em horas de ponta e reforçar a resiliência, oferecendo mais de 71 mil milhões de euros em benefícios diretos para os consumidores e mais de 300 mil milhões de euros em ganhos indiretos.”
A Comissão reconhece que, sem mecanismos claros para remunerar flexibilidade, seja através de gestão ativa da procura, armazenamento ou redes inteligentes, o sistema continuará a investir de forma ineficiente, reforçando capacidade física onde soluções digitais seriam mais rápidas e económicas.
Daí a insistência numa Estratégia Europeia para a Flexibilidade, ainda inexistente, mas considerada essencial para desbloquear valor económico e acelerar a transição.

O risco da implementação
Apesar da ambição, o European Grids Package enfrenta um risco recorrente na política energética europeia: a execução. As regras existem, os diagnósticos são conhecidos e as tecnologias estão disponíveis. O problema está na aplicação desigual entre Estados-Membros, na lentidão administrativa e na resistência regulatória a modelos inovadores.
Como sublinha Laurent Bataille, “o problema da Europa reside na implementação”. Sem reguladores capacitados, critérios transparentes para priorização de projetos e processos digitais de ligação à rede, o pacote corre o risco de se tornar mais um quadro estratégico sem impacto real no terreno.
A própria lógica de “ordem de chegada” nos pedidos de ligação continua a penalizar projetos mais eficientes e flexíveis, atrasando investimentos críticos em renováveis, mobilidade elétrica e eletrificação do aquecimento.

Uma decisão estrutural, não técnica
O European Grids Package não é apenas uma iniciativa energética. É uma decisão estrutural sobre o modelo económico europeu. Redes modernas, digitais e resilientes são condição necessária para a soberania energética, para a competitividade industrial e para a proteção dos consumidores face à volatilidade dos mercados.
Sem uma rede ativa, inteligente e responsiva, a Europa arrisca-se a transformar a transição energética num fator de bloqueio ao crescimento, em vez de uma alavanca estratégica. O pacote aponta na direção certa. A questão decisiva é se os Estados-Membros, reguladores e operadores estarão preparados para executar com a urgência que a “Era da Eletricidade” exige.







