Ser empreendedor é ter uma enorme capacidade de adaptação

António Marques é Terapeuta Ocupacional, especialista no tratamento e acompanhamento de idosos, no Hospital Ortopédico de Sant’Anna e na Escola Superior de Saúde de Alcoitão. Patrícia Protásio é um nome conhecido para os leitores regulares dos artigos do Empreendedor. Foi, até 2015, a Editora Executiva e atualmente é Consultora Editorial no Emprendedor.com. Os dois constituem um casal de empreendedores que decidiram criar o projeto Eu Consigo e fazer do seu sonho a sua profissão. Ambos descobriram que o segredo para empreender é a capacidade de adaptação.

Como surgiu a ideia?

Patrícia: A ideia foi-se construindo, não surgiu de repente. Eu estava muito cansada de trabalhar em horários que eram inconciliáveis com o facto de ter filhas, de não querer morar no centro de Lisboa e de precisar de tempo para outras coisas. Assim que surgiu a oportunidade de ficar uns tempos em casa aproveitei e dediquei-me a ler algumas coisas sobre empreendedorismo. A partir daí foi fácil fazer a ligação. O António era terapeuta ocupacional e conversávamos muito sobre o facto de a terapia ocupacional ser pouco conhecida em Portugal. Ele tinha começado a fazer alguns domicílios para além do seu trabalho regular e verificava que as vantagens de trabalhar diretamente no ambiente de desempenho das pessoas eram enormes. Quisemos fazer em conjunto algo que pudesse ajudar as pessoas e também contribuir para mudar a abordagem na prática da Terapia Ocupacional e a sua imagem na sociedade.

‘Sentíamos alguma estagnação nos nossos percursos profissionais e considerámos que um novo desafio nos faria bem’

O que vos motivou a tomar a decisão de empreender?

António: As motivações foram de várias ordens. Por um lado financeiras, porque acreditamos que a procura pelo trabalho dos terapeutas ocupacionais irá crescer nos próximos anos, à medida que for sendo divulgado e que as pessoas se apercebam de como estes técnicos podem ajudá-las. Tendo em conta o perfil demográfico da população portuguesa e a evolução que a terapia ocupacional sofreu noutros países da Europa, considerámos que este seria um bom momento para lançarmos um projeto, aprendermos e começarmos a ganhar posição no mercado. Por outro lado, motivações pessoais, porque ambos sentíamos alguma estagnação nos nossos percursos profissionais e que um novo desafio nos faria bem. E por fim o facto de sentirmos que era uma área em que podíamos mesmo fazer melhor do que o que estava a ser feito.

Quem são os vossos potenciais clientes?

Patrícia: Os nossos clientes são pessoas que não encontram no sistema nacional de saúde as respostas adequadas ao seu caso e que não se resignam. Pessoas que, devido a uma doença, uma deficiência, uma intervenção cirúrgica, uma queda, ou simplesmente devido ao avançar da idade, sentem dificuldades que as impedem de realizar atividades que são significativas para elas, nomeadamente as atividades da sua vida diária, e que querem continuar a ter uma vida ativa e plena de significado.

António: No sistema de saúde tradicional o utente encontra muitos profissionais especializados em lidar com os sintomas ou sequelas causados pela sua condição de saúde, mas dificilmente encontra quem o ajude a lidar com as consequências práticas para a sua vida diária, a sua vida familiar, social, íntima, profissional… Através da ‘Eu Consigo’ estas pessoas podem beneficiar da intervenção de um terapeuta ocupacional que vai adaptar o ambiente em que se insere e os objetos que a pessoa usa, aconselhar produtos de apoio, realizar treinos de diversas ordens e acompanhar a pessoa até que ela consiga ultrapassar ou contornar as barreiras que estão a impedi-la de ter uma vida satisfatória.

É um complemento ao sistema tradicional de saúde?

Patrícia: Uma das principais vantagens deste tipo de intervenção é a pessoa ser acompanhada no seu ambiente – seja a sua casa, o lar onde está a viver, o hospital onde está internada, o seu local de trabalho, a comunidade em que se insere -com um atendimento 100% personalizado, em vez de num ambiente clínico no qual, habitualmente, um único terapeuta tem que se dividir entre vários utentes, e em que os treinos realizados são simulações usando materiais terapêuticos que pretendem substituir os objetos que a pessoa usa lá em casa.

Por fim, enquanto satisfaz as necessidades do utente, a ‘Eu Consigo’ satisfaz também as do núcleo familiar mais próximo, dos cuidadores, que nem sempre estão preparados para lidar com o estado de saúde da pessoa e precisam de aconselhamento especializado ou de formação.

Sentem que estão a preencher um nicho de mercado?

Patrícia: Bem, neste campo temos sempre uma dimensão de nicho, pelo menos enquanto a perceção dos benefícios da terapia ocupacional não der ‘o salto’ que desejamos. No entanto quando se lida com terapia ocupacional é muito fácil perdermo-nos em possibilidades. A verdade é que os terapeutas ocupacionais trabalham com pessoas de todas as idades (desde recém-nascidos até ao fim da vida) e praticamente todas as condições de saúde.

O que fizemos foi entrevistar dezenas de profissionais e selecionar uma carteira de colaboradores que nos permite dispor de terapeutas especializados em diversas áreas de intervenção. Por exemplo, temos terapeutas que trabalham a área da deficiência, outros que trabalham questões específicas da pediatria, outros que trabalham demências. Em determinado ponto do percurso apercebemo-nos de que estávamos a abrir demasiado o leque de opções e resolvemos concentrar os nossos esforços, pelo menos do ponto de vista do marketing, em 3 pontos fortes: as vítimas de acidente vascular cerebral (AVC) e de traumatismo crânio-encefálico (TCE), as pessoas com demência e os seniores. Podemos dizer que somos neste momento talvez a única empresa especializada em terapia ocupacional a trabalhar diariamente com uma base de profissionais qualificados, e em simultâneo na área das consultas e da formação.

Quais são os vossos objetivos para este ano?

António: Os objetivos mais importantes para este ano são conseguir a certificação da nossa formação e fazer chegar a mais pessoas a mensagem de que a terapia ocupacional em geral e os nossos serviços em particular podem de facto ajudar. Pretendemos ainda continuar a desenvolver parcerias com as instituições locais da área metropolitana de Lisboa e implementar um projeto em conjunto com uma rede de ginásios. Quanto à faturação, em 2016 duplicámo-la relativamente a 2015, e esperamos conseguir fazer o mesmo em 2017.

Que conhecimentos tinham nesta área?

António: A vantagem de trabalharmos juntos é que as nossas formações e experiências profissionais são muito complementares. Eu, enquanto terapeuta ocupacional, tenho o conhecimento técnico, a experiência de relacionamento com os utentes e com as famílias, o conhecimento próximo de como funciona o sistema de saúde e das necessidades que os diversos profissionais sentem. A Patrícia já tinha alguma experiência na gestão de projetos e acabou por fazer também um curso de gestão de formação, sendo que a área de formação dela é comunicação e marketing, o que é um excelente ganho para a empresa, uma vez que a terapia ocupacional precisa de ser bem comunicada para que mais pessoas a entendam.

Utilizaram ferramentas de gestão para organizar melhor o vosso negócio?

Patrícia: Sim. O Canvas foi um dos primeiros passos, fizemos um workshop sobre a metodologia na João Sem Medo e depois viemos para casa e começámos… a gastar post-its! Ajudou, sem dúvida, a moldar a ideia e a dar o empurrão inicial para fazermos as perguntas que precisavam de ser feitas e a iniciar um processo que deu origem à empresa.

‘Acabamos por gastar algum do tempo que devíamos passar em família ou a dois a falar sobre coisas urgentes ou que nos preocupam’

Tiveram dificuldade em separar a vida familiar da profissional, com o vosso projeto?

Patrícia: Por vezes sim. Acabamos por gastar algum do tempo que devíamos passar em família ou a dois a falar sobre coisas urgentes ou que nos preocupam. Por vezes temos de dizer ‘desculpa mas agora não falo mais sobre trabalho’, de modo a impor o limite. Houve muitos dias em que estávamos completamente exaustos e nem nos apetecia falar um com o outro.

Por outro lado, enquanto casal é muito bom sentir que estamos a construir algo juntos, que partilhamos a mesma visão e que é o nosso esforço conjunto que nos está a conduzir no caminho certo. Quando algo corre bem e podemos partilhá-lo entre nós e com a restante família, isso faz-nos ganhar o dia. Feito o balanço, tem valido a pena.

Querem partilhar alguma dificuldade que encontraram no vosso projeto? Como a ultrapassaram?

Patrícia: Sentimos que estabelecemos objetivos muito ambiciosos nos primeiros anos e isso acabou por criar situações de esforço e stress demasiado intensos. É algo a corrigir em 2017. Começámos o ano a criar uma agenda estruturada para cada pessoa, que contempla tempos de descanso ‘obrigatórios’ e conciliáveis com a agenda da restante equipa.

António: De um modo geral, a principal dificuldade que encontramos é o desconhecimento generalizado sobre o que é a terapia ocupacional e quais são os seus benefícios. No nosso Site e Facebook estamos constantemente a publicar artigos e vídeos sobre esta temática, juntando-nos ao movimento de milhares de terapeutas ocupacionais que procuram divulgar a sua prática em todo o mundo.

‘Temos tendência a apressar as coisas para vermos resultados e acabamos por ficar frustrados por não conseguirmos fazer as coisas o melhor que sabemos’

Que aprendizagem retiram que possa ser inspiradora para outros empreendedores?

Patrícia: Perceber o tempo – os anos passam a correr e é importante fazer com que cada dia conte. Um planeamento cuidado e que tenha em conta uma estimativa realista do tempo que se gasta com cada tarefa é imprescindível. Temos tendência a tentar apressar as coisas para vermos resultados e acabamos por ficar com os dias demasiado cheios e em constante frustração por não conseguirmos fazer as coisas o melhor que sabemos. Mais vale sermos menos ambiciosos, dar tempo ao tempo, e ir construindo a um ritmo mais lento mas mais saudável.

Isto significa que no início não podemos estar dependentes do nosso sucesso imediato para subsistirmos. Ter um trabalho em part-time ou fazer ‘uns biscates’ permite-nos ter algum dinheiro garantido para equilibrar as contas e retirar dos nossos ombros algum do peso da responsabilidade. Depois há que ter a inteligência emocional necessária para gerir tudo isto, mas com menos pressão. Tudo é uma questão de adaptação. Ser empreendedor é isso mesmo, ter uma enorme capacidade de adaptação.

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