Código do Trabalho: uma reforma para o século XX num mercado de trabalho do século XXI

O anteprojeto do Governo mercado de trabalho falha ao responder às novas dinâmicas laborais e mantém um modelo desajustado à economia contemporânea.

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O Governo apresentou o anteprojeto Trabalho XXI como resposta à transformação acelerada do mercado laboral. A intenção é meritória: atualizar o Código do Trabalho para uma economia mais digital, mais flexível e mais permeável à tecnologia. A questão central, porém, não é saber se o diploma corrige assimetrias antigas — isso faz, em vários pontos — mas se está à altura das tendências que já estão a moldar o futuro do trabalho. E a resposta é menos evidente do que parece.

A análise do texto revela um esforço sério de alinhamento com o direito europeu, sobretudo nas matérias de plataformas digitais, trabalho economicamente dependente e transparência salarial. O país precisa desta atualização. A presunção de contrato de trabalho nas plataformas aproxima-nos do novo quadro comunitário e reduz a nebulosidade jurídica que permitia zonas cinzentas de precariedade. A par disso, o reforço das licenças parentais, da inclusão e da contratação coletiva responde a pressões reais de um mercado que exige mais equilíbrio, mais diversidade e mais previsibilidade.

O mercado de trabalho já está vários passos à frente desta lei.

Mas, se o objetivo é preparar Portugal para a próxima década, o anteprojeto parece ainda ancorado numa lógica defensiva: proteger o que existe, amarrar a legislação ao presente e corrigir disfunções acumuladas. O problema é que o mercado de trabalho já não está no presente. Está vários passos à frente.

Os dados mais recentes do Global Talent Barometer 2025 do Manpower Group, por exemplo, mostram um paradoxo revelador. Os trabalhadores nunca se sentiram tão confiantes nas suas competências, tão alinhados com o propósito das empresas e tão preparados para o futuro digital. Mas, simultaneamente, nunca reportaram níveis tão elevados de stress, ansiedade e intenção de mudar de emprego.

No caso dos jovens, as taxas de intenção de saída atingem valores recorde. No caso dos gestores intermédios, a exaustão crónica tornou-se norma. Porém, o anteprojeto fala de segurança e saúde no trabalho em termos clássicos — acidentes, doenças profissionais — mas quase não toca nesta nova paisagem emocional e psicológica que define a relação com o trabalho no século XXI.

Falta uma abordagem clara aos riscos psicossociais e ao impacto dos algoritmos na experiência de trabalho.

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Este é um dos grandes pontos cegos da reforma. Falta-lhe uma abordagem clara aos riscos psicossociais, ao direito efetivo à desconexão, à sobrecarga digital e ao impacto das arquiteturas algorítmicas na experiência de trabalho. A lei olha para a inteligência artificial quase exclusivamente através do prisma das plataformas, como se o algoritmo fosse um fenómeno periférico. No entanto, já hoje milhares de trabalhadores, como os bancários, profissionais de logística, equipas de call center, comerciais e até quadros superiores, são avaliados, classificados e monitorizados por sistemas automáticos cuja opacidade cria novos domínios de pressão invisível. Regular este impacto não é uma questão académica; é a nova fronteira do direito laboral.

O segundo ponto cego está na flexibilidade. O diploma reforça proteções — e ainda bem — mas continua a tratar a flexibilidade como exceção a controlar, e não como ativo estratégico para atrair talento. O mesmo talento que, como mostram todos os estudos recentes, é cada vez mais móvel, exigente e propenso a procurar fora aquilo que não encontra dentro: autonomia real, modelos híbridos funcionais, equilíbrio entre vida pessoal e profissional, progressão transparente.

O trabalho com propósito não basta: sem equilíbrio e desenvolvimento, o talento parte

A legislação portuguesa continua a olhar para o trabalho como um binómio “presencial/remoto” e a organização do tempo como um calendário a ajustar. Mas a economia digital exige outra ambição: modelos de trabalho desenhados para reduzir o stress estrutural, impulsionar a aprendizagem contínua e permitir trajetórias de carreira não lineares.

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O terceiro desfasamento está na qualificação. O anteprojeto menciona formação contínua, mas não enfrenta a urgência da requalificação massiva. Nos dados que analisámos ao longo dos últimos meses, o padrão repete-se: quem tem mais qualificações é quem mais facilmente sai do país; quem as não tem é quem mais sofre com a estagnação, com menor bem-estar e menor confiança. Falta à reforma uma visão articulada entre aprendizagem ao longo da vida, transição digital e reconversão profissional. Sem ela, a lei resolve o passado, mas não prepara o futuro.

Nada disto significa que o anteprojeto seja inútil. Pelo contrário: muitos dos avanços eram esperados e respondem a problemas reais. O risco está noutro lugar. Enquanto a lei tenta estabilizar o presente, o mercado de trabalho está a mover-se numa direção diferente — mais rápida, mais híbrida, mais emocionalmente exigente e mais dependente de competências que mudam todos os anos.

Portugal precisa de pensar o trabalho como infraestrutura crítica da competitividade nacional

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O país não enfrenta apenas uma disputa económica; enfrenta uma disputa pelo tempo, pelo bem-estar e pela capacidade de reter talento num mundo onde a mobilidade deixou de ser exceção. Portugal pode continuar a atualizar o Código do Trabalho de forma incremental ou pode aceitar o desafio de pensar o trabalho como infraestrutura crítica da competitividade nacional. Esse é o ponto em que o Anteprojeto de Lei ainda não chega.

O trabalho do futuro não será apenas digital ou automatizado. Será, sobretudo, humano e tanto mais forte quanto mais capaz for de integrar propósito, equilíbrio, aprendizagem e saúde mental. A legislação laboral tem agora a oportunidade de ser parte da solução. Falta-lhe apenas transformar essa oportunidade em visão.

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